RESUMO: O presente estudo busca analisar a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da interpretação da exceção de imprescritibilidade contida no art. 37, §5º, da Constituição da República de 1988, com especial enfoque nos seus reflexos sobre os processos de controle externo no âmbito dos Tribunais de Contas. Objetiva-se, assim, identificar as balizas para a aplicação do instituto da prescrição sobre a pretensão reparatória das Cortes de Contas.
Palavras chave: Tribunais de Contas. Prescrição. Pretensão reparatória. Evolução jurisprudencial. Supremo Tribunal Federal.
1 – Introdução
O princípio da segurança jurídica não é previsto expressamente na Constituição da República de 1988. Sem embargo, a estabilidade das relações sociais é uma das finalidades centrais de todo ordenamento jurídico, em especial de um Estado Democrático de Direito. Daí porque a segurança jurídica é considerada um princípio geral do Direito (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 127).
José Joaquim Gomes Canotilho leciona que há três principais “refrações” do princípio da segurança jurídica (CANOTILHO, 1998, p. 252):
[...] (1) relativamente a actos normativos – proibição de normas retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais – inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração – tendencial estabilidade dos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos.
Sob essa última perspectiva, os institutos da prescrição e da decadência são corolários da proteção à confiança legítima, buscando impedir a perpetuação de situações jurídicas indefinidas.
A Constituição da República estabelece que “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvados as respectivas ações de ressarcimento” (art. 37, §5º). Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, a regra é a prescritibilidade da pretensão punitiva estatal em face de ilícitos causadores de danos aos cofres públicos. Isto é, transcorrido o prazo prescricional, é incabível a punição dos responsáveis pela violação normativa. Em uma interpretação literal, porém, o texto constitucional ressalva a imprescritibilidade das “ações de ressarcimento”.
Nesse sentido, Raquel Melo Urbano de Carvalho assevera (CARVALHO, 2014, p. 193):
[...] o art. 37, §5º, da CR teve o propósito manifesto de impor a imprescritibilidade diante de ilícito cometido por agente público que tenha causado prejuízo à Administração e, em consequência, de toda a sociedade, evitando que administradores cujas condutas se afastaram das normas do sistema jurídico gozem os frutos dos ilícitos praticados.
Com base nisso, até muito recentemente, entendia-se que a pretensão reparatória dos Tribunais de Contas, destinada a apurar danos ao erário e condenar os responsáveis ao seu ressarcimento, seria imprescritível. Somente submeter-se-iam à prescrição a pretensão das Cortes de Contas de punir ilícitos na sua esfera de atuação (pretensão punitiva) e a de expedir determinações positivas e negativas necessárias ao exato cumprimento da lei (pretensão corretiva) (MOURÃO, 2009).[1]
Não obstante, nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) prolatou algumas decisões que modificaram, substancialmente, a interpretação acerca da regra da imprescritibilidade prevista na parte final do art. 37, §5º, da Constituição da República. Tais julgados, embora não tenham sido proferidos em causas versando sobre a atuação dos Tribunais de Contas, impactam profundamente o entendimento acerca do exercício de sua pretensão reparatória.
A bem dizer, na mesma medida em que lança luzes sobre a matéria, a recente jurisprudência do STF produz sombras igualmente intensas sobre as balizas da competência das Cortes de Contas de apurar danos ao erário e condenar os responsáveis à sua reparação.
2 – Evolução jurisprudencial acerca da imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário
Após a promulgação da Constituição da República de 1988, consolidou-se o entendimento, baseado na literalidade do §5º do seu art. 37, de que seria imprescritível toda e qualquer ação tendente ao ressarcimento ao erário de prejuízos decorrentes de atos ilícitos, independentemente de sua natureza. Portanto, a pretensão reparatória poderia ser veiculada por meio de ações criminais, ações civis públicas, ações cíveis em geral e até mesmo ações de controle externo perante as Cortes de Contas, a despeito do tempo transcorrido desde a prática do ato ilícito que lhe desse causa.
Esse panorama começou a ser revisto por meio do julgamento do Recurso Extraordinário nº 669.069 (Tema nº 666 de Repercussão Geral), que versava sobre pretensão de ressarcimento veiculada pela União em face de empresa de transporte, tendo como pano de fundo acidente automobilístico causado por motorista dessa última pessoa jurídica. Por entender que o prejuízo ao erário não decorria de conduta “revestida de grau de reprovabilidade mais pronunciado” tampouco “atentatória aos princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública”, a Corte Suprema afastou a incidência da regra excepcional de imprescritibilidade prevista na parte final do §5º do art. 37 da Constituição da República. Determinou, assim, a aplicação do prazo prescricional comum para as ações de indenização por responsabilidade civil em que a Fazenda Pública figura como autora.
Na oportunidade, o STF fixou a seguinte tese de repercussão geral: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil” (Tema nº 666).
Pouco tempo depois, a matéria foi revisitada na apreciação do Recurso Extraordinário nº 852.475/SP, interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, questionando a alienação fraudulenta de dois veículos do Município de Palmares Paulista por valores abaixo do preço de mercado.
No julgamento, por 6 a 5 votos, o STF fixou a tese de que apenas são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa (Tema nº 897). O acórdão foi assim ementado:
DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. IMPRESCRITIBILIDADE. SENTIDO E ALCANCE DO ART. 37, § 5 º, DA CONSTITUIÇÃO. 1. A prescrição é instituto que milita em favor da estabilização das relações sociais. 2. Há, no entanto, uma série de exceções explícitas no texto constitucional, como a prática dos crimes de racismo (art. 5º, XLII, CRFB) e da ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CRFB). 3. O texto constitucional é expresso (art. 37, § 5º, CRFB) ao prever que a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos na esfera cível ou penal, aqui entendidas em sentido amplo, que gerem prejuízo ao erário e sejam praticados por qualquer agente. 4. A Constituição, no mesmo dispositivo (art. 37, § 5º, CRFB) decota de tal comando para o Legislador as ações cíveis de ressarcimento ao erário, tornando-as, assim, imprescritíveis. 5. São, portanto, imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. 6. Parcial provimento do recurso extraordinário para (i) afastar a prescrição da sanção de ressarcimento e (ii) determinar que o tribunal recorrido, superada a preliminar de mérito pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento por improbidade administrativa, aprecie o mérito apenas quanto à pretensão de ressarcimento. (RE 852475, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 08/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-058 DIVULG 22-03-2019 PUBLIC 25-03-2019)
Fixada a tese de repercussão geral, a distinção entre atos de improbidade dolosos e culposos passou a ser criticada por alguns autores, dado que não adotada expressamente no texto constitucional (OLIVEIRA, 2023, p. 980).
Seja como for, a Lei nº 14.230/2021 alterou profundamente a Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), de modo que, atualmente, “a ilegalidade sem a presença de dolo que a qualifique não configura ato de improbidade” (art. 17-C, §1º, LIA). Com isso, perdeu importância a ressalva de que somente ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso de improbidade são imprescritíveis, uma vez que, ausente o dolo, não se pode falar conduta ímproba (NOHARA, 2023, 836).
Portanto, o entendimento hoje prevalecente é no sentido de que somente os prejuízos ao erário decorrentes de atos tipificados na Lei de Improbidade Administrativa podem dar ensejo a ações de ressarcimento não sujeitas à prescrição.
3 – A imprescritibilidade das ações de ressarcimento e os Tribunais de Contas
Naturalmente, a evolução jurisprudencial sobre a interpretação da parte final do 5§º do art. 37 da Constituição da República, notadamente a tese de repercussão geral fixada no Tema nº 897, também surtiu efeitos no âmbito dos Tribunais de Contas.
Em um primeiro momento, prevaleceu o entendimento de que restava preservada a imprescritibilidade da pretensão reparatória das Cortes de Contas, desde que as condutas reprimidas em sede de controle externo também fossem definidas em lei como atos de improbidade e derivassem de dolo.
Entretanto, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 636.886, o STF fixou nova tese de repercussão geral: “É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas” (Tema nº 899).
O caso subjacente referia-se a ação de execução de título executivo extrajudicial fundado em decisão do Tribunal de Contas da União, que condenara particular ao ressarcimento de recursos recebidos por meio de convênio, sob o fundamento de que a prestação de contas não fora apresentada em momento oportuno. Ocorre que a Advocacia Geral da União havia ajuizado a ação de execução mais de 5 anos após a decisão do TCU.
Vale reproduzir a ementa do julgado:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REPERCUSSÃO GERAL. EXECUÇÃO FUNDADA EM ACÓRDÃO PROFERIDO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. PRETENSÃO DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. ART. 37, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRESCRITIBILIDADE. 1. A regra de prescritibilidade no Direito brasileiro é exigência dos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, o qual, em seu sentido material, deve garantir efetiva e real proteção contra o exercício do arbítrio, com a imposição de restrições substanciais ao poder do Estado em relação à liberdade e à propriedade individuais, entre as quais a impossibilidade de permanência infinita do poder persecutório do Estado. 2. Analisando detalhadamente o tema da “prescritibilidade de ações de ressarcimento”, este SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL concluiu que, somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/1992 (TEMA 897). Em relação a todos os demais atos ilícitos, inclusive àqueles atentatórios à probidade da administração não dolosos e aos anteriores à edição da Lei 8.429/1992, aplica-se o TEMA 666, sendo prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública. 3. A excepcionalidade reconhecida pela maioria do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no TEMA 897, portanto, não se encontra presente no caso em análise, uma vez que, no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas a partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento. 4. A pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos reconhecida em acórdão de Tribunal de Contas prescreve na forma da Lei 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal). 5. Recurso Extraordinário DESPROVIDO, mantendo-se a extinção do processo pelo reconhecimento da prescrição. Fixação da seguinte tese para o TEMA 899: “É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas”. (RE 636886, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 20/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-157 DIVULG 23-06-2020 PUBLIC 24-06-2020)
Nitidamente, tal acórdão dizia respeito à fase de execução das decisões dos Tribunais de Contas, e não propriamente à fase de formação desses títulos executivos extrajudiciais (fase de conhecimento) (ver, nesse sentido, MOURÃO et al., 2022). Ainda assim, surgiram controvérsias a respeito do seu impacto sobre o dever de agir dos órgãos de controle externo, notadamente em virtude da provocação de jurisdicionados.
Diante disso, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (ATRICON) expediu a Nota Técnica nº 04/2020, com a seguinte conclusão:
23. Por todo o exposto, a ATRICON, reconhecendo a necessidade de atuação para orientação geral e uniformização de entendimento, em nome da segurança jurídica, em relação à decisão do Supremo Tribunal Federal, em repercussão geral, no Recurso Extraordinário nº 636.886, acerca do tema da prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao Erário, fundada em decisão de Tribunal de Contas, com base nas razões acima expostas, conclui: 23.1 - A tese jurídica fixada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do TEMA 899, de repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 636.886, aplica-se somente no âmbito das ações de execução ajuizadas com base na Lei Federal nº 6.830/1980 – Lei de Execução Fiscal, não alcançando os processos que tramitam no âmbito interno dos Tribunais de Contas; 23.2 – A decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito do TEMA 899 restringe-se aos processos de execução relativos à pretensão de ressarcimento (imputação de débito), não tratando da pretensão punitiva (aplicação de sanções); 23.3 - Havendo legislação local que normatize os institutos da prescrição e da decadência, recomenda-se que o seu conteúdo seja observado pelo respectivo Tribunal de Contas. 24. As conclusões desta Nota Técnica prevalecerão até que sobrevenha alteração da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou norma geral que trate do tema. 25. Esta Nota Técnica está acompanhada de análises, pareceres e documentos que embasaram as conclusões ora apresentadas.
Opostos Embargos de Declaração ao acórdão do Recurso Extraordinário nº 636.886, o Min. Relator Alexandre de Moraes afastou a abrangência do Tema nº 899 sobre a fase de constituição das decisões dos Tribunais de Contas:
A pretensão executória de título executivo proveniente de decisão do TCU da qual resulte a imputação de débito ou multa é prescritível, e, portanto, a ela se aplica o prazo prescricional da Lei de Execução Fiscal. Nenhuma consideração houve acerca do prazo para constituição do título executivo, até porque esse não era o objeto da questão cuja repercussão geral foi reconhecida no Tema 899, que ficou adstrito, como sobejamente já apontado, à fase posterior à formação do título. Reitere-se: Após a conclusão da tomada de contas, com a apuração do débito imputado ao jurisdicionado, a decisão do TCU formalizada em acórdão terá eficácia de título executivo e será executada conforme o rito previsto na Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/1980), por enquadrar-se no conceito de dívida ativa não tributária da União, conforme estatui o art. 39, §2º, da Lei 4.320/1964. Assim, são impertinentes as alegações do embargante no sentido de que devem ser esclarecidos o regramento, bem como os marcos inicial, suspensivos e interruptivos do prazo de prescrição, aplicáveis para o exercício da pretensão punitiva pelo TCU.
Não obstante, posteriormente, o STF passou a decidir que incide o prazo prescricional quinquenal previsto no art. 1º da Lei nº 9.873/1999 nas ações de controle externo perante o Tribunal de Contas da União (fase de conhecimento). Essa evolução interpretativa deu-se, sobretudo, pela compreensão de que os órgãos de controle externo não possuem competência constitucional para a aferição do elemento subjetivo das condutas causadoras de danos ao erário. Isto é, como as Cortes de Contas são inaptas a qualificar uma conduta como ato de improbidade doloso, não poderiam invocar a ressalva de imprescritibilidade contida no Tema de Repercussão Geral nº 897.
Contrariamente à lógica processual, a nova interpretação originou-se em decisões monocráticas, sendo que só posteriormente foi consagrada em pronunciamentos colegiados, como no acórdão abaixo:
AGRAVO INTERNO EM MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). TOMADA DE CONTAS ESPECIAL. CONDENAÇÃO AO RESSARCIMENTO DE VALORES E AO PAGAMENTO DE MULTA. PRESCRIÇÃO. CONSUMAÇÃO. AUSÊNCIA DE MARCO INTERRUPTIVO. 1. A jurisprudência do Supremo consolidou-se no sentido da prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário, exceção feita àquela decorrente de atos de improbidade praticados com dolo. 2. Inexistindo norma legal a fixar o prazo prescricional no tocante à formação do débito a ser cobrado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), deve ser aplicado o prazo de 5 (cinco) anos, em interpretação sistemática da legislação infraconstitucional acerca do exercício de ação de ressarcimento pela Administração Pública federal (Lei n. 9.873/1999), da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (Lei n. 8.443, de 16 de julho de 1992), da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992) e da Lei de Execuções Fiscais (Lei n. 6.830, de 22 de setembro de 1980), bem assim em homenagem aos princípios da segurança jurídica (CF, art. 5º, XXXVI) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). 3. A jurisprudência do Supremo é firme no sentido de a prescrição da pretensão punitiva do Tribunal de Contas – imposição da multa prevista nos arts. 57 e 58 da Lei Orgânica do TCU – ocorrer em 5 (cinco) anos, presente interpretação sistemática das disposições dos arts. 1º e 2º da Lei n. 9.873/1999, bem assim de ser impertinente considerar o prazo de 10 (dez) anos de que trata o art. 205 do Código Civil (MS 35.940, ministro Luiz Fux, DJe de 14 de junho de 2020; e MS 32.201, ministro Roberto Barroso, DJe de 7 de agosto de 2017), observada a ocorrência de eventuais marcos interruptivos. 4. Ante a regra da prescritibilidade que rege o direito brasileiro, não se afigura razoável concluir que a prática de ato voltado à apuração de fato tido por irregular na aplicação de verba pública, obtida mediante a celebração de convênio, tenha a força de interromper o prazo prescricional independentemente do tempo transcorrido, se a ocorrência não tiver como objeto específico a verificação de ilegalidade ligada especificamente à parte interessada e se a ela não foi dada ciência de tais acontecimentos. 5. Impõe o reconhecimento da prescrição o decurso de prazo superior a 5 (cinco) anos entre as datas apontadas nas informações como sendo o termo inicial da prescrição, – débitos ocorridos em “16/2/2001, 11/6/2002, 16/06/2002 e 9/7/2002” – e a citação do impetrante em 12 de abril de 2011 na TC n. 026.133/2011-3, processo no qual foram rejeitadas as contas, com sua consequente condenação ao ressarcimento de valores e ao pagamento de multa. 6. Agravo interno provido e, em consequência, concedida a segurança, para declarar a ocorrência da prescrição ressarcitória e punitiva. (MS 37940 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: NUNES MARQUES, Segunda Turma, julgado em 09-05-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 29-06-2023 PUBLIC 30-06-2023)
Fato é que, atualmente, é incontroversa a prescritibilidade da pretensão reparatória dos Tribunais de Contas. Nesse sentido, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (ATRICON), o Instituto Rui Barbosa (IRB), o Conselho Nacional de Presidentes dos Tribunais de Contas (CNPTC) e a Associação Brasileira dos Tribunais de Contas dos Municípios (ABRACOM) expediram a Nota Recomendatória ATRICON-IRB-CNPTC-ABRACOM n° 02/2023, recomendando que “os Tribunais de Contas devem reconhecer prescrição e decadência como matérias de ordem pública” e que “tanto a pretensão punitiva quanto a ressarcitória ficam sujeitas à prescrição”. Consta ainda, no documento, que “as pretensões do Tribunal de Contas prescrevem em cinco anos”.
4 – A questão das causas interruptivas e do termo inicial do prazo prescricional
Se, por um lado, as recentes decisões do STF firmaram a certeza da inaplicabilidade aos processos de controle externo da exceção de imprescritibilidade prevista na parte final do §5º do art. 37 da Constituição da República, por outro, ocasionaram certa perplexidade na aplicação do instituto da prescrição. Isso porque foram proferidas decisões contraditórias no tocante ao termo a quo do prazo prescricional.
Ao apreciar a constitucionalidade da Lei Orgânica do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará, a Suprema Corte consignou que “a previsão segundo a qual o prazo prescricional inicia-se a partir da data de ocorrência do fato não encontra abrigo no ordenamento constitucional, nem nas leis federais de regência” (ADI nº 5509/CE). Colaciona-se abaixo a ementa do julgado:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ. IMPUGNAÇÃO AOS ARTS. 76, §5º E 78, §7º, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E PARCIAL DA LEI ESTADUAL Nº 12.160/1993. NORMAS QUE ESTABELECEM A OBSERVÂNCIA, PELOS TRIBUNAIS DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS E DO ESTADO DO CEARÁ, DOS INSTITUTOS DA PRESCRIÇÃO E DA DECADÊNCIA NO EXERCÍCIO DE SUAS COMPETÊNCIAS. INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO MODELO FEDERAL DE ALCANCE DA CLÁUSULA DE IMPRESCRITIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 35-C, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO II. OFENSA AO ART. 75, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PARCIAL PROCEDÊNCIA. 1. Na ausência de regra expressa para o modelo federal, tem os Estados competência para suplementar o modelo constitucional de controle externo. 2. O Plenário deste Tribunal consolidou a interpretação do alcance da cláusula constitucional da imprescritibilidade no modelo federal como limitada aos “atos dolosos de improbidade administrativa”. É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas: RE 636.886, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 24.06.2020, Tema n.º 899 da Repercussão Geral. Inocorrência de violação à simetria. 3. Pontualmente, a previsão segundo a qual o prazo prescricional inicia-se a partir da data de ocorrência do fato não encontra abrigo no ordenamento constitucional, nem nas leis federais de regência. Precedentes. Declaro a inconstitucionalidade do inciso II do parágrafo único do art. 35-C da Lei do Estado do Ceará 12.160, de 1993. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente.” (ADI 5509, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 11/11/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-036 DIVULG 22-02-2022 PUBLIC 23-02-2022)
De acordo com o voto do Min. Relator Edson Fachin, a contagem do prazo prescricional das pretensões das Cortes de Contas deve iniciar-se com a ciência inequívoca da irregularidade “nos casos em que, por iniciativa própria, o Tribunal realiza auditorias ou inspeções, assim como nos casos em que a ele são diretamente levadas as informações necessárias para a instauração de tomada de contas especial”. Já nas hipóteses de imposição normativa de prestação de contas ao órgão de controle externo, o lapso prescricional começa a fluir “na data em que as contas deveriam ter sido entregues”.
De modo diametralmente oposto, na ADI nº 5.384/MG, o STF declarou a constitucionalidade da Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (Lei Complementar estadual nº 102/2008), cujo art. 110-E prevê a data de ocorrência do fato como termo inicial para contagem do prazo prescricional nos processos de controle externo. Embora a petição inicial não houvesse abordado especificamente a questão do termo a quo da contagem do prazo prescricional, mas, sim, questionado a própria prescritibilidade das pretensões do Tribunal de Contas, a matéria era passível de discussão, haja vista que “o Supremo Tribunal Federal fica condicionado ao pedido, porém não a causa de pedir” (MORAES, 2023, p. 875).
Diante disso, o Procurador-Geral da República opôs Embargos de Declaração, requerendo que a Suprema Corte se pronunciasse “sobre a aplicação do paradigma firmado na ADI nº 5.509/CE em relação à constitucionalidade da previsão da data de ocorrência do fato como termo inicial para cômputo do prazo prescricional no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais”. Os aclaratórios, porém, foram rejeitados.
Portanto, o STF necessita uniformizar sua jurisprudência sobre o termo inicial da contagem do prazo da prescrição da pretensão reparatória dos Tribunais de Contas, sob pena de permanência de parcela da insegurança jurídica que o instituto visa combater.
Sem prejuízo disso, o entendimento vencedor na ADI nº 5.509/CE parece francamente superior àquele resultante da ADI nº 5.384/MG. Sabe-se que a prescrição fulmina uma pretensão diante da inércia de seu titular. Se os Tribunais de Contas ainda não tomaram ciência da ilicitude, inexiste inércia estatal a justificar o início do decurso do prazo prescricional. De outra parte, se o termo a quo coincidir com a data da ocorrência do fato, prestigiam-se os infratores das normas de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial que consigam ocultar por mais tempo seus ilícitos.
O entendimento consubstanciado na ADI nº 5.509/CE, ademais, harmoniza-se com a jurisprudência consolidada no STF acerca do termo inicial do prazo decadencial para registros de atos concessórios de aposentadorias, reformas e pensões (ver RE nº 636.553, Min. Rel. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 19/02/2020). Isso porque, nesses casos, considera-se que o prazo de cinco anos para registro se inicia com a chegada do processo ao Tribunal de Contas, e não com a publicação do ato de concessão.
Desse modo, revelam-se absolutamente razoáveis os parâmetros constantes na Nota Recomendatória ATRICON-IRB-CNPTC-ABRACOM n° 02/2023, que resultam de desdobramento do voto do Min. Relator Edson Fachin na ADI nº 5509/CE:
5. Devem ser considerados como termo inicial para contagem do prazo: I) a data da apresentação da prestação de contas ao Tribunal de Contas competente; II) a data em que as contas deveriam ter sido prestadas, no caso de omissão de prestação de contas; III) a data da apresentação da prestação de contas do exercício em que tiver cessado a irregularidade permanente ou continuada; IV) o recebimento da denúncia ou da representação pelo Tribunal, quanto às apurações decorrentes de processos dessas naturezas; e V) a data do conhecimento da irregularidade ou do dano, quando constatados em fiscalização realizada pelo Tribunal competente.
5.1. Os marcos iniciais previstos nos incisos IV e V devem ser aplicados quando o conhecimento da irregularidade ou do dano pelo Tribunal de Contas ocorrer em data anterior às disciplinadas nos incisos I, II e III.
Para além disso, ainda há elevada insegurança jurídica quanto às causas interruptivas da prescrição no âmbito dos Tribunais de Contas.
O Tribunal de Contas da União regulamentou a matéria por meio da Resolução TCU nº 344/2022, cujo art. 5º dispõe:
Seção III
Das Causas Interruptivas da Prescrição
Art. 5º A prescrição se interrompe:
I - pela notificação, oitiva, citação ou audiência do responsável, inclusive por edital;
II - por qualquer ato inequívoco de apuração do fato;
III - por qualquer ato inequívoco de tentativa de solução conciliatória;
IV - pela decisão condenatória recorrível.
§ 1° A prescrição pode se interromper mais de uma vez por causas distintas ou por uma mesma causa desde que, por sua natureza, essa causa seja repetível no curso do processo.
§ 2° Interrompida a prescrição, começa a correr novo prazo a partir do ato interruptivo.
§ 3º Não interrompem a prescrição o pedido e concessão de vista dos autos, emissão de certidões, prestação de informações, juntada de procuração ou subestabelecimento e outros atos de instrução processual de mero seguimento do curso das apurações.
§ 4° A interrupção da prescrição em razão da apuração do fato ou da tentativa de solução conciliatória, tal como prevista nos incisos II e III do caput, pode se dar em decorrência da iniciativa do próprio órgão ou entidade da Administração Pública onde ocorrer a irregularidade.
§ 5º A interrupção da prescrição em razão dos atos previstos no inciso I tem efeitos somente em relação aos responsáveis destinatários das respectivas comunicações. (AC)(Resolução-TCU nº 367, de 13/03/2024, BTCU Deliberações nº 42/2024)
De plano, observa-se que as causas interruptivas, nos processos perante o TCU, encontram-se previstas em ato normativo infralegal, o que, por si só, não parece apropriado. Isso porque o próprio órgão cuja inércia conduz à prescrição não pode ter a prerrogativa de estipular as hipóteses em que fica afastada a caracterização de sua indolência.
Ademais, é possível notar que o art. 5º da Resolução TCU nº 344/2022 prevê hipóteses excessivamente elásticas de interrupção da prescrição, a exemplo de “qualquer ato inequívoco de apuração do fato” (inciso II), com a agravante de que seu §1º autoriza sucessivas interrupções, seja por causas distintas, seja pela mesma causa.
Embora o referido ato normativo não explique o significado da expressão, a Nota Recomendatória ATRICON-IRB-CNPTC-ABRACOM n° 02/2023 propõe que se considerem atos inequívocos de apuração do fato:
I) o despacho que ordenar a apuração dos fatos; II) a portaria de nomeação de Comissão de Auditoria ou Inspeção; III) a determinação do Tribunal de Contas para que o gestor instaure o processo de Tomada de Contas Especial; IV) a concessão de tutela provisória em qualquer fase processual; V) a conversão dos autos em Tomada de Contas Especial; VI) a expedição de Despacho de Definição de Responsabilidade; e VII) a elaboração de Relatório Técnico em que tenham sido apontadas irregularidades.[2]
Bem se vê, portanto, que a Resolução TCU nº 344/2022 tem o potencial de tornar excessivamente difícil o reconhecimento da prescrição nos processos de controle externo, a depender da forma que for interpretada. Por via de consequência, pode ser esvaziada a própria natureza prescritível das pretensões das Cortes de Contas.
Resta, pois, aguardar o posicionamento do STF sobre as causas interruptivas e o termo inicial da contagem do prazo da prescrição no âmbito dos Tribunais de Contas, a fim de responder às dúvidas que ainda pairam.
4 – Conclusão
O tema da imprescritibilidade das ações de ressarcimento de danos aos cofres públicos foi objeto de importante evolução jurisprudencial do STF nos últimos anos, o que acabou por prestigiar a segurança jurídica (interesse público primário) em detrimento do erário (interesse público secundário). Atualmente, entende-se que a ressalva de imprescritibilidade contida na parte final do §5º do art. 37 da Constituição da República refere-se unicamente às ações de ressarcimento fundadas na prática de atos dolosos tipificados na Lei de Improbidade Administrativa (Tema nº 897).
Naturalmente, aludida evolução jurisprudencial também surtiu efeitos no âmbito dos Tribunais de Contas. Não sem percalços, hoje é incontroverso que tanto a pretensão punitiva quanto a ressarcitória das Cortes de Contas estão sujeitas à prescrição.
Sem embargo, ainda persistem dúvidas acerca do termo inicial para a contagem do prazo prescricional nos processos de controle externo, notadamente em virtude da coexistência de julgados da Suprema Corte com entendimentos absolutamente díspares (ADI nº 5.509/CE, julgado em 11/11/2021, e ADI nº 5.384/MG, julgado em 30/05/2022).
Ademais, o STF ainda necessita debruçar-se sobre a amplitude das causas interruptivas da prescrição nos processos perante o Tribunal de Contas, bem como sobre a constitucionalidade de sua veiculação por meio de atos normativos infralegais.
REFERÊNCIAS
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ATRICON – ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL; IRB – INSTITUTO RUI BARBOSA; CNPTC – CONSELHO NACIONAL DE PRESIDENTES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS; ABRACOM – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS. Nota Recomendatória ATRICON-IRB-CNPTC-ABRACOM nº 02/2023. Disponível em: https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2023/04/Nota-Recomendatoria-Conjunta-n-022023.pdf. Acesso em 21.04.2024.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 636.886/AL. Tribunal Pleno. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgamento em 20.04.2020. Dje-157 de 23.06.2020.
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[1] A rigor, parece-nos questionável a prescritibilidade da pretensão corretiva dos Tribunais de Contas, haja vista sua natureza prospectiva. Nessa linha de raciocínio, o art. 12 da Resolução TCU nº 344/2022 prevê que “o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva e da pretensão ressarcitória, a despeito de obstar a imposição de sanção e de reparação do dano, não impede o julgamento das contas, a adoção de determinações, recomendações ou outras providências motivadas por esses fatos, destinadas a reorientar a atuação administrativa”. Todavia, o aprofundamento do tema não se insere no escopo do presente estudo.
[2] Vale ressalvar, porém, que a proposta da Nota Recomendatória é que a interrupção da prescrição ocorra uma única vez.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado em Direito Administrativo e Licitações e Processo Civil (UCAM). Servidor efetivo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE/MG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, Alysson Vasconcelos Silva. Prescrição da pretensão ressarcitória dos tribunais de contas: uma certeza e muitas dúvidas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2024, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /65221/prescrio-da-pretenso-ressarcitria-dos-tribunais-de-contas-uma-certeza-e-muitas-dvidas. Acesso em: 28 dez 2024.
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